DA QUEBRADA À CÂMARA

Mulheres debatem dificuldades vividas no maior aglomerado de BH

Audiência colocou frente a frente Mulheres da Quebrada, vereadoras e PBH na busca de soluções para o Aglomerado da Serra

sexta-feira, 2 Julho, 2021 - 16:30

Foto: Cláudio Rabelo/CMBH

Elas atuam no Aglomerado da Serra, que tem mais de 45 mil habitantes distribuídos em oito vilas que formam um dos maiores aglomerados da América Latina. Elas dão assistência a cerca de 600 famílias nas mais diversas áreas, incluindo apoio psicológico e assistencial. Elas são as Mulheres da Quebrada e suas demandas e dificuldades de acesso às políticas públicas foram o tema de audiência pública promovida nesta sexta-feira (2/7) pela Comissão de Mulheres da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Junto com vereadoras e representantes da Prefeitura, as integrantes do projeto apresentaram suas demandas e receberam a promessa da busca de solução conjunta para os problemas enfrentados no dia a dia por mulheres, na maioria pretas e chefes de família.

Fundado em 2018, o coletivo Mulheres da Quebrada desenvolve ações voltadas para as mulheres da Serra e suas famílias, como encontros para formação de redes de apoio e suporte mútuo no território; oficinas e workshops de dança, teatro, poesia e outras linguagens artísticas; apoio psicológico, com oferta de atendimento gratuito por psicólogas voluntárias; além de campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos e materiais de higiene pessoal e de limpeza para a comunidade. “Nosso trabalho é levar cuidado e afeto e tudo que atravessa isso. Somos 17 mulheres, sendo quatro fundadoras, quatro na comunicação, três na educação, duas na pesquisa e estamos ainda estruturando uma área de logística”, disse uma das fundadoras, Sheyla Santana Bacelar.

Para ela, problemas como saúde mental, falta de escola, moradia e alimentação se tornaram ainda mais crônicos com a chegada da pandemia de covid-19. “Na educação tem gente que não tem nem celular, nem internet. E estou falando de mães, alunos e também professores. Na violência doméstica, que aumentou, há dificuldade para encaminhar os casos, e na cultura seria preciso ter editais direcionados para as regiões periféricas. O que ocorre na favela é feito ‘na tora’”, explicou Sheyla, criticando a dificuldade da sociedade em entender que estes são problemas enfrentados há anos. “A sociedade só entende o que chega no auge, não entende o que já está acontecendo”, finalizou, recebendo o apoio da vereadora Bella Gonçalves (Psol), autora do requerimento que solicitou a audiência. “Esse mundo criado na pandemia só tem ampliado ainda mais os abismos e as desigualdades”, afirmou Bella.

Também integrante do projeto, Natália Gomes acompanha, entre outras atividades, o trabalho relacionado à saúde mental das mulheres assistidas pelo coletivo. Segundo ela, o cenário das famílias é propício para que transtornos mentais se façam ainda mais presentes. “Como permanecer psiquicamente saudável diante de várias violências psicológicas que existem dentro do Aglomerado? Se ficarem observando lá na Volta (região do aglomerado onde se encontram as três vias de maior movimento), é possível ver várias pessoas com doenças mentais, com surto e uso de drogas. Os casos graves aumentaram e a população não tem acesso ao Cersam (Centro de Referência em Saúde Mental). São questões que estão mais escancaradas por causa da falta. Queremos ter o direito de acessar nossos direitos”, salientou Natália, esclarecendo ainda que o aumento da violência doméstica e outras dificuldades relacionadas à pandemia têm piorado muito o quadro. De acordo com Bella, o caso é de extrema gravidade. “A negação de direitos no contexto da pandemia adoece”, disse.

Falta de acesso e racismo

“O Aglomerado tem muitos lugares difíceis de acessar. Não entra Samu, não entra Uber, não entra táxi. Ainda me preocupa a questão da fome. A gente sabe que essa situação se perpetuando por muito tempo torna tudo ainda mais grave. Vocês estão trazendo pra gente essas necessidades que são intersetoriais”, disse a vereadora Macaé Evaristo (PT), salientando a necessidade de o poder público fazer algo para atender às demandas das comunidades periféricas. De acordo com Iza Lourença (Psol), algumas desculpas são usadas pelos governos para o não atendimento dessas comunidades. “O tamanho do Aglomerado é usado sempre como desculpa. É como se o Aglomerado tivesse que caber no poder público e não o contrário. O tamanho do território tem que ser encarado como potência e não como desculpa. É um valor da cidade que precisa ser potencializado”, afirmou Iza.

A doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais Ana Beatriz Nogueira faz parte do Mulheres da Quebrada. Citando Lélia Gonzales, intelectual pioneira nos estudos sobre a Cultura Negra no Brasil, ela afirmou que a história se mantém como antes, o que reforça o abandono. “As mulheres negras são a viga mestra da comunidade. Essas mulheres periféricas estão ainda desamparadas. As Mulheres da Quebrada continuam sendo as vigas mestras. As políticas e serviços que existem e não chegam a estas comunidades parecem ter sido feitos para não chegar. É preciso racializar e territorializar as políticas públicas levando em conta ainda a questão de gênero”, afirmou a antropóloga. Ela enumerou o que deve ser feito e afirmou ser preciso, entre outras coisas, de mais escolas, mais transporte escolar, mais vagas em creches, internet de qualidade, educação tecnológica, arte e cultura no território, formação e capacitação profissional, combate à violência e ao racismo e habitação voltada às mulheres. “O desamparo de Lélia é o desgosto de Carolina”, disse Bella Gonçalves, citando Carolina de Jesus, negra, autora do livro “Quarto de Despejo” e uma das escritoras mais importantes do Brasil.

Para a deputada estadual Andréia de Jesus, a questão racial é fundamental para combater as desigualdades e a falta de acesso a serviços públicos no Aglomerado da Serra. “É escandaloso como as mulheres negras têm carregado nas costas a garantia e o socorro à comunidade. Esta atuação do Mulheres da Quebrada é um exemplo pra gente, mas não podemos romantizar, pois elas estão fazendo o que o poder público deveria fazer. Elas que garantem a proteção de jovens ameaçados e cestas básicas para as famílias, por exemplo. Isso denuncia a ausência de um Estado que precisa estar mais próximo”, reivindicou a deputada, dizendo ainda que há um empurra-empurra entre PBH e governo do estado sobre as responsabilidades. A vereadora Fernanda Pereira Altoé (Novo) se disponibilizou a ajudar neste entrave entre Município e Estado. “Peço que me passem um panorama sobre onde estão as demandas do Estado. Me coloco como uma ponte para ajudar a resolver”, afirmou.

A Prefeitura

Algumas demandas específicas foram colocadas e as questões apresentadas aos representantes da PBH que participaram da audiência. Uma delas é o funcionamento do Centro de Referência de Assistência Social – Cras Vila Marçola. Segundo informações que chegaram ao Mulheres da Quebrada, ele estaria fechado, dificultando o atendimento de diversas famílias da região. Adriana Silveira está respondendo interinamente pela Diretoria de Políticas para as Mulheres da Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania. Segundo ela, os Cras foram fechados para atendimento presencial no início da pandemia e em setembro do ano passado voltaram a funcionar com horário reduzido. “Em relação ao Cras Vila Marçola ele está aberto de 10h às 16h. O horário foi reduzido, mas está aberto. As pessoas têm ido e participado inclusive de reuniões”, disse a diretora, explicando ainda que todas as outras demandas apresentadas pelas mulheres serão levadas à secretária Maíra Colares, incluindo a possibilidade de participação das integrantes do projeto em uma feira que funciona na Avenida Bernardo Monteiro. “Vamos ver esta possibilidade de estar na feira em uma das vagas que há”, finalizou Adriana.

Também foi questionada a falta de psicólogos e psiquiatras para atender à demanda sobre saúde mental. Graça Garcia é coordenadora de Atenção à Saúde da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde. De acordo com ela, a secretaria vem enfrentando muita dificuldade no atendimento básico em saúde. “Há profissionais em menor quantidade, sobrecarregados e atendendo em vários centros de saúde. Com as duas ondas de covid tivemos que contingenciar o atendimento especializado e priorizar o atendimento à covid. É uma necessidade da cidade inteira, inclusive em hospitais onde estes profissionais estão sendo muito demandados. Mesmo assim vamos vislumbrar algo que possa ser feito”, afirmou Graça, que vai levar à secretaria o questionamento sobre a não subida do Samu. “Toda ligação é gravada e aí a gente consegue checar os motivos”, contou. Bella Gonçalves sugeriu marcar uma reunião com a coordenação da Saúde Mental para saber onde estão faltando profissionais e verificar a possibilidade de atendimento na periferia.

Ana Flávia Martins trabalha na Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel). A ela coube responder questões levantadas pelas participantes sobre moradia e um projeto, em parceria com a Prodabel, de instalação de internet pública em vilas e favelas da cidade. Segundo Ana Flávia, com a Lei da Morada Segura, que inclui mulheres vítimas de violência em projetos de habitação do Município, a Prefeitura está conseguindo trabalhar com mais intensidade a inserção desse grupo e resolver questões de moradia para as mulheres. “Além da nova lei, a Prefeitura tem priorizado mulheres chefes de família nos projetos de habitação. Estamos em uma fase que dependemos muito de recursos externos e com uma capacidade de orçamento limitada, mas para as questões colocadas aqui temos estes dois caminhos”, disse Ana. “Sobre os pontos de internet, equipes da Prodabel estão estudando as vilas e favelas para verificar a viabilidade. Vamos ver e fazer contato com o Mulheres da Quebrada”, afirmou.

Foram levantadas ainda questões relativas ao acesso à educação na região do Aglomerado. Além das dificuldades com o ensino remoto, as moradoras também deixaram claro que são poucas as vagas na educação infantil. “É preciso pensar em um facilitador pra gente”, disse Sheyla Santana. Segundo Mara Evaristo, diretora de Educação Inclusiva da Secretaria Municipal de Educação, está sendo feito, desde o ano passado, um movimento de aproximação entre família e escola. “Há uma tentativa de manter a conexão para que o vínculo com a escola não fosse rompido. Estamos trabalhando para assegurar este ensino para estudantes que estão em situação de mais fragilidade. Há um mapa socioeducacional com recortes como raça/cor que traz um diferencial para o atendimento”, afirmou Mara, contando ainda que está sendo feito um debate em relação ao atendimento presencial para quem não tem acesso a tecnologias. Mara propôs um diálogo com as Mulheres da Quebrada para verificar as dificuldades surgidas, trabalhando caso a caso.

As vereadoras Flávia Borja (Avante) e Macaé Evaristo apresentaram demandas sobre educação referentes ao retorno às aulas presenciais, cadastro escolar, acesso à educação infantil e comitês criados nas escolas para tratar da retomada das aulas. As demandas serão levadas para a secretaria.

Encaminhamentos

Ao final da audiência, que durou cerca de três horas, foram dados alguns encaminhamentos como a realização de visita e reunião para tratar do funcionamento do Cras Vila Marçola, verificação da possibilidade de instalação de pontos de internet gratuito no Aglomerado da Serra, realização de reunião com a Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde, aprovação de pedido de informação e indicação sobre o acesso à educação básica para famílias mais vulneráveis e o acompanhamento da apuração, por parte do Ministério Público e da Corregedoria da Polícia Militar, da morte do jovem Ryan Pablo da Silva, de 18 anos, durante uma operação policial realizada na segunda-feira (28/6) no Aglomerado da Serra. “É importante que a gente faça o acompanhamento para que haja a responsabilização do policial que atirou, mas também do seu comando. Não é possível que a gente viva em uma comunidade onde o Samu não sobe, mas a polícia sobe pra matar um jovem”, finalizou Bella.

Assista ao vídeo da reunião na íntegra.

Superintendência de Comunicação Institucional

Audiência pública - Finalidade: Debater as ações das Mulheres da Quebrada no Aglomerado da Serra - 17ª Reunião Ordinária - Comissão de Mulheres