Fragilidades dos Cersams são apontadas, mas modelo de atendimento é defendido
Trabalhadores e usuários do setor foram ouvidos após crítica do CRM sobre qualidade da assistência psiquiátrica
Foto: Karoline Barreto/CMBH
As fragilidades do atendimento psiquiátrico via Sistema Único de Saúde (SUS) em Belo Horizonte foram tema da audiência pública realizada pela Comissão de Saúde e Saneamento nesta quarta-feira (8/9). A reunião teve o objetivo de discutir as denúncias feitas pelo Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG) sobre o pedido de interdição dos 16 Centros de Referência em Saúde Mental de Belo Horizonte (Cersams). Trabalhadores do setor e usuários dos serviços apontaram problemas como falta de profissionais multidisciplinares e más condições de trabalho, além de deficiências no suporte de urgência e emergência e fechamento de leitos em hospitais psiquátricos. A maioria dos participantes, contudo, defendeu o modelo assistencial antimanicomial praticado atualmente nos Cersams. A Secretaria Municipal de Saúde reconheceu a necessidade de avanços e disse que está em andamento um estudo para o redimencionamento da rede. O debate foi solicitado por Bella Gonçalves (Psol), Duda Salabert (PDT), Iza Lourença (Psol), Macaé Evaristo (PT) e Pedro Patrus (PT).
O psiquiatra do Cersam Noroeste e do Serviço de Urgência Psiquiátrica (SUP) da Prefeitura de Belo Horizonte, Políbio José de Campos, defendeu o modelo atual de atendimento psiquiátrico feito na capital mineira. Campos disse que a reforma psiquiátrica realizada na capital mineira com base na Lei Paulo Delgado (Lei federal 10.2016), que trata da proteção e dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Ele citou as diretrizes da Organização Mundial de Saíde (OMS) que, desde 2001, propõe uma reforma no sistema assistencial de saúde mental no mundo. Campos afirmou que Belo Horizonte, Campinas e Brasilândia são exemplos de atendimento baseado em redes comunitárias, o que precisa ser reforçado. Acrescentou que há uma disputa quanto aos modelos manicomial e antimanicomial no Brasil e solicitou que o Legislativo reforce os pontos de fragilidade do sistema para construção de uma rede mais potente.
O vice-presidente da Associação Mineira de Psiquiatria, Bruno Couto Correia, enumerou alguns dos problemas do atendimento psiquiátrico de BH. A falta de médicos, técnicos de enfermagem, psicólogos, enfermeiros, de condições de trabalho e de salário atraentes foram citados. Correia acredita que o atendimento a casos psiquiátricos de nível leve e moderado são mais pacificados e que o problema se concentra na urgência e emergência. E disse que, após o fechamento de 130 leitos do Hospital Galba Veloso, não foram abertos novos leitos no Hospital Raul Soares. O médico defendeu um atendimento de urgência que conjugue a psiquiatra, o clínico geral e o neurologista, modelo inexistente nos hospitais particulares. E propôs reformar ou melhorar psiquiatria da Rede de Atendimento Pscicossocial (Raps) da capital mineira.
Familiares e pacientes
Familiares de pessoas com sofrimento mental divergiram quanto à necessidade de mais locais para internação. Carolina Lacerda, cujo irmão tem esquizofrenia e é usuário de drogas e utiliza o Cersam, afirmou que os Hospitais Galba Veloso e Raul Soares não são manicômios. Ela contou que seu irmão não tem autonomia para tomar remédios sozinho e, em situações de crise, é liberado e pode não voltar para casa. Leida Uematu, membro do Fórum Mineiro de Saúde Mental é irmã de paciente com sofrimento mental, se tornou militante da luta antimanicomial defendeu a empatia e a liberdade da pessoa com sofrimento mental.
O representante da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Asussam- MG), Paulo José Azevedo de Oliveira, contou sua trajetória de tratamento mental, que inclui internações e utilização de Cersam. Oliveira associou manicômio a remédio e choque, e disse ter ideias suicidas, administradas não somente por remédio, ao qual atribui 20% de responsabilidade de seu tratamento. Ele disse que através da psicologia aprendeu a ressignificar a memória afetiva. E defendeu o Cersam como um ambiente de respeito, no qual o usuário negocia o tratamento com o terapeuta, e permite a troca de afetos. “O Cersam foi uma escola da vida para mim. A senzala acabou, o manicômio vai acabar também”, concluiu.
Redimensionamento em estudo
Renata Mascarenhas Bernardes, enfermeira e diretora de Assistência à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA), reconheceu a necessidade de mais avanços no setor. Ela disse que o atendimento psiquiátrico tem uma articulação intensa com o território de atenção primária, e disse estar ouvindo as críticas e sugestões para fortalecer e qualificar o atendimento. “Será feito um estudo de redimensionamento da rede com equipe multiprofissional”, afirmou.
Fernando Siqueira, psiquiatra e gerente de Saúde Mental da SMSA, afirmou que, antes de emitir a nota, o CRM-MG não procurou a gerência para se inteirar dos trabalhos realizados e que a instância mais adequada para fazer críticas ao sistema é o Conselho Municipal de Saúde (CMS). O gerente também disse que o fechamento do Hospital Galba Veloso foi uma iniciativa do governo do Estado e da presidência da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), e que não contou com a participação da Prefeitura de BH.
Siqueira disse estar aberto ao diálogo, que o estudo de redimensionamento da rede está avançando e reafirmou a disposição de fazer política de saúde mental dentro do cuidado em liberdade. Ele leu uma mensagem do secretário Municipal de Saúde, Jackson Machado Pinto, em que este agradece ao CRM-MG os questionamentos “que tiveram papel fundamental para que a SMSA e o Controle Social nos uníssemos e fizéssemos um esforço gigante para o fortalecimento do nosso modelo de atendimento em saúde mental e que se torna ainda mais robusto com um possível incremento de equipes”. E reforçou a recomendação de OMS para que os cuidados psiquiátricos não sejam feitos em hospitais e sim através de serviços comunitários e territorializados.
CRM cobra melhorias há mais de uma década
Sibele Carvalho, membro do CRM-MG, esclareceu que o conselho não se posicionou contra a luta antimanicomial nem o cerceamento das liberdades individuais, e sim a favor da presença de equipes multidisciplinares nos hospitais. Ela ponderou que o CRM não tem competência para fechar os Cersams, mas que o trabalho do médico está interditado. Carvalho negou que o CRM tenha viés político, afirmando que a entidade solicita soluções de problemas nos Cersams ao gestor deste 2007, sem resposta.
Carvalho questionou se faz sentido colocar um paciente em surto ao lado de um paciente operado. E comentou que o paciente que não tem discernimento para tomar o remédio e está em liberdade está em perigo. Ela afirmou que o prazo de 60 dias dado à Prefeitura para solução dos problemas apontados na nota está chegando ao fim. E concluiu que as manifestações que aliam o problema em debate ao repúdio ao presidente Bolsonaro estão mudando o foco do debate.
Duda Salabert argumentou que o posicionamento político de uma pessoa não implica em ela estar filiada a um partido, e que certos posicionamentos sobre a política de saúde mental podem estar ligado a interesses econômicos.
José Ferreira (PP) disse que o problema dos Cersams tem origem em outros mandatos e não vê justificativa no fechamento dos centros. E solicitou um posicionamento urgente da Prefeitura, que se omitiu na melhoria dos serviços de saúde mental. Ele defendeu que os pacientes possam voltar ao convívio social, e se colocou à disposição para cobrar do Executivo qualquer medida nesse sentido.
Representantes de médicos e profissionais de saúde
Representantes de entidades sindicais, conselhos regionais de profissionais de saúde diversos e de trabalhadores atuantes nos Cersams apontaram a necessidade de inúmeras melhorias, mas defenderam o modelo adotado em Belo Horizonte. Eles questionaram a nota do CRM-MG, cujas críticas deveriam ser direcionadas aos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde. Também defenderam que vetar a atuação de médicos nos Cersams prejudica o sistema e não contribui para o atendimento dos pacientes. E afirmaram que os médicos que trabalham nos centros não foram consultados sobre o tema da nota e não são favoráveis ao fechamento dos Cersams.
A secretária-geral do Conselho Estadual de Saúde de Minas Gerais, Lourdes Aparecida Machado, disse que nos primeiros meses de 2020 as despesas do Hospital Galba Veloso eram da ordem de R$ 2 milhões, com 106 pacientes internados e atendimento diário de 20 pacientes, despesa que não se justifica. E propôs uma vistoria nas comunidades terapêuticas locais em que ocorrem violação dos direitos dos pacientes.
O diretor da Sindibel e secretário geral do Conselho Municipal de Saúde, Bruno Pedralva, repudiou a intervenção ética aos locais e disse cobrar incessantemente avanço do SUS, afirmando haver 448 cargos vagos de médico neste momento. A representante do movimento de trabalhadores em saúde mental de BH e terapeuta ocupacional Daniela de Melo Gomes defendeu a celeridade do concurso público, que irá trazer mais servidores para a rede de atendimento. O representante do Conselho Regional de Psicologia do Estado de Minas Gerais, Fabricio Ribeiro, leu nota conjunta dos Conselhos Regionais de Psicologia, Fisioterapia Serviço Social e Farmácia que legitima a intenção do CRM-MG, mas afirma que a intervenção tem efeitos negativos no sistema, dizendo que ela se aproxima mais da desconstrução do modelo de atendimento praticado e menos na preocupação com os médicos. A representante da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), Vera Prates, enumerou melhorias necessárias no sistema, como valorização de trabalho, insumos, e revisão da lista de fármacos autorizados, reafirmando o compromisso ético com o modelo antimanicomial.
Bella Gonçalves disse que essa é uma segunda audiência que mostrou várias posições sobre o tema e pode haver mais debates se necessário. A vereadora disse ser positiva a presença do Executivo na escuta do que precisa ser aprimorado, defendendo a necessidade de mais recursos para a melhoria desses serviços. E concluiu afirmando seguir na luta antimanicomial. Duda Salabert também defendeu ser necessário debater medidas para ampliar as políticas dos Cersams.
Assista ao vídeo da reunião na íntegra.
Superintendência de Comunicação Institucional