Especialista apresenta mapeamento e sugere ações para pessoas em situação de rua
Para serem efetivas, políticas para quem está nas ruas precisam dar voz a este segmento da população. Inclusão exige ações coordenadas
Foto: Abraão Bruck/CMBH
O grande número de homens e mulheres vivendo nas ruas de BH, debaixo de viadutos e marquises, em tendas improvisadas ou ao relento, que aumentou significativamente com os impactos da pandemia, revela uma situação triste e perturbadora para quem transita na cidade. Dando prosseguimento à busca de caminhos para a superação dessa condição, garantindo o acesso a serviços e direitos básicos e a inclusão social e profissional dessas pessoas, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Transporte e Sistema Viário recebeu, nesta quinta (4/11), o pesquisador e ativista da “linha de frente” Tiago Azevedo, que apresentou dados colhidos no contato direto com um grande número de indivíduos em situação de rua. O georreferenciamento, a movimentação dessas pessoas no espaço urbano e o mapeamento do perfil considerando as diferentes realidades e demandas vão orientar os próximos passos do Grupo de Trabalho (GT) “BH Sem Morador de Rua”, criado pelo colegiado. Diante da complexidade da questão, o requerente da audiência defendeu a coordenação de ações do poder público, entidades do 3º setor e empresas privadas.
Antes de passar a palavra ao convidado, Bráulio Lara (Novo), proponente e relator do GT, lamentou a ausência da secretária municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, Maíra Colares, que não compareceu e não enviou representante à audiência. O vereador reafirmou que a complexidade da questão exige o envolvimento e cooperação de outros setores além da assistência social, como saúde, qualificação profissional, geração de emprego e renda e programas habitacionais; além da superação da situação de rua, o objetivo central do Grupo é oferecer uma “porta de saída” efetiva que permita a essas pessoas resgatar a dignidade e encontrar um caminho, evitando que retornem para as ruas. A “longa jornada” a ser percorrida no tratamento de todos os aspectos da questão, segundo ele, exige a criação de uma verdadeira força-tarefa. Lara celebrou o avanço e o reconhecimento da cidade ao trabalho do GT, que vem atraindo o interesse de pessoas que querem acompanhar, agregar e trazer ideias e sugestões.
Uma das pessoas que procurou o Grupo e ofereceu-se para contribuir, o professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Tiago Azevedo, ex-integrante da regional mineira da Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA-Brasil), foi convidado pela comissão para apresentar os dados obtidos durante sua atuação, entre 2016 e 2019, no Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) da rede de Assistência Social da Prefeitura de BH, conveniada com a entidade. Segundo ele, a coleta direta de informações no contato direto com as pessoas que estão na rua por diferentes razões supera a metodologia adotada em estudos da área, que identificam elementos comuns que embasam teorias, mas não refletem as diferentes realidades e demandas; o cruzamento e tratamento desses dados, nunca antes obtidos em Belo Horizonte, possibilitam a criação de políticas públicas mais efetivas.
Perfis, necessidades e deficiências
Especializado em gestão e monitoramento de dados, Tiago participou da reestruturação e aperfeiçoamento do Sistema de Informação e Gestão de Políticas Sociais (SigPS) da PBH, que passou a fazer o planilhamento dos dados. As conversas diretas com pessoas em situação de rua com diferentes histórias, realidades e necessidades - “cada indivíduo um universo” - resultam em dados mais precisos; porém, o padrão e os critérios estabelecidos e “engessados” do Sistema burocratizam o processo, dificultando o atendimento de demandas específicas que “não estão escritas em nenhum manual”. Em relação ao quantitativo, estimado em 9 mil pessoas, ele ponderou que esse número é baseado no CadÚnico, formado por pessoas que se autodeclaram em situação de rua a fim de obter ou agilizar o acesso a políticas públicas e não reflete necessariamente a realidade. O convidado exibiu mapas ilustrando a movimentação e as áreas com maior concentração de sem-tetos, em geral as mais populosas, próximas a comércios e grandes avenidas. Os mapas localizam ainda os abrigos, albergues e casas de acolhimento da Prefeitura, que, além do número insuficiente de vagas, podem ter o acesso dificultado pela distância e limitações do horário de atendimento.
O estudo de Azevedo incluiu ainda a identificação dos indivíduos por critérios de faixa etária, sexo, gênero, orientação sexual, deficiência física e mental e situação socioeconômica. Em 3.989 ações do Saes realizadas no terceiro trimestre de 2019, em que foram abordados 2.436 indivíduos (70 idosos, 1.773 adultos e 273 jovens), a maioria era do sexo masculino (1.800), heterossexual (1.777) e cis (2.301); 14 foram vítimas de violência de gênero. O uso de álcool e drogas foi declarado por 1.799, 83 apresentam transtornos mentais e 81 estão em condições precárias de saúde; 23 pessoas com deficiência e 18 gestantes e puérperas. Quanto à situação socioeconômica, 1.332 exercem trabalhos informais e apenas 10 possuem trabalho formal; 455 são beneficiárias do Bolsa-Família,136 recebem aposentadoria e 387 não recebem nenhum benefício; 60 são egressos do sistema prisional e 34 são migrantes.
O levantamento dos diferentes perfis, históricos, condições de vida e necessidades, segundo ele, possibilita um encaminhamento mais adequado de cada grupo ou indivíduo e facilita a definição do caminho a ser traçado; as situações e demandas específicas devem ser apuradas por meio da busca ativa, acompanhamento sistemático e escuta qualificada dessas pessoas; outro fator essencial, mas deficente, é a continuidade do processo para além da identificação e o diagnóstico. A descentralização das equipes de abordagem, serviços e atendimentos, coordenados e prestados pelo Centro de Referência em Assistência Social (CREA) de cada regional, segundo ele, aperfeiçoou o sistema, mas é necessário o engajamento de outros setores para garantir a integralidade do processo.
Envolvimento da sociedade
A descontinuidade das ações em razão da burocracia e lentidão do sistema, que não oferece uma porta de saída definitiva por meio de políticas de moradia e inserção profissional, leva muitos atendidos a desistir e voltar à situação anterior, amparando-se muitas vezes no álcool e nas drogas para amenizar a dor, a fome e o frio. Segundo o pesquisador, a rede assistencial formada por órgãos públicos, entidades e a própria comunidade, que oferece agasalho e alimento, pode e deve ser fortalecida através da conscientização da sociedade sobre a importância desse trabalho e da contribuição de cada um para assistir, encaminhar e incluir essas pessoas em vez de chamar as autoridades para removê-las das praças e calçadas. Para reforçar a proteção e atendimento dos necessitados, especialmente os recém-chegados às ruas, que não estão familiarizados com o ambiente hostil e não conhecem as opções de abrigamento e assistência, pode-se cruzar os dados de georreferenciamento com a localização de igrejas, entidades filantrópicas e comunidades terapêuticas, por exemplo, ampliando e facilitando o acesso a serviços.
Sobre o fato de algumas pessoas não quererem sair das ruas, observado por Gilson Guimarães (Rede), Tiago confirmou que realmente existem, mas é preciso convencê-las de que a sensação de liberdade que alegam é aparente e falsa e, na realidade, a vida nas ruas é marcada pela falta de privacidade, segurança e dignidade. Além de buscar sua adesão aos programas sociais, é preciso ensinar a diferença entre ocupar e residir no espaço público e a necessidade de respeitar o direito da comunidade ocupá-lo também, já que a cidade deve ser de todos. O retorno à cidade de origem, sugerido pelo vereador, é facilitado pelo Plantão do Migrante, instalado na rodoviária, que concede passagens gratuitas até 30 dias a partir da chegada. Depois desse prazo, a rede de assistência também pode fornecer a passagem de volta, se for o desejo da pessoa e verificada a existência de família disposta a acolhê-la e/ou vínculos sociais no local.
Respondendo a pergunta de Wesley (Pros) sobre o atendimento aos dependentes químicos em situação de rua nos serviços públicos de saúde mental (Cersams) da Prefeitura, alvo de críticas da Associação Mineira de Psiquiatria, usuários e familiares, o convidado declarou-se inapto para avaliá-lo por não possuir conhecimentos suficientes sobre os trabalhos e serviços prestados nesses equipamentos. O parlamentar criticou a ausência da Prefeitura, mais uma vez, a uma audiência pública do Legislativo, descumprindo a obrigação de prestar contas, responder os questionamentos e dar informações aos vereadores sobre as questões debatidas. Presidente da Comissão, ele lamentou ter que adotar uma posição mais firme mas afirmou aos colegas que está disposto a utilizar o instrumento da convocação, na próxima ocasião.
Integração e coordenação de ações
Além do eixo “atendimento e encaminhamento social”, os trabalhos do GT incluem “revitalização de centralidades e bairros degradados”, “fomento do turismo em regiões específicas” e reinserção no mercado de trabalho”, demandando o envolvimento de diversos órgãos e setores para a abordagem ampla e integral do problema e busca de soluções efetivas e definitivas. Nessa perspectiva, o relator questionou se existe integração entre os atores envolvidos com os diferentes aspectos, como a Guarda Municipal, Polícia Militar, Ministério Público, serviços de assistência social, saúde mental, limpeza urbana. Tiago informou que o diálogo não é recorrente, ocorrendo apenas quando são realizados GTs ou ações específicas em que um órgão é acionado para dar suporte ao outro. Ele ressaltou, porém, que qualquer diálogo e decisão referente ao tema deve incluir obrigatoriamente a escuta e a participação dos interessados: “Não falem de mim e por mim sem mim”, é o lema da categoria.
Bráulio salientou que o GT não é de cunho higienista, como muitos chegaram a pensar, e criticou a atitude da Prefeitura ao não apresentar dados, ações e resultados sobre a questão, passando a percepção de que nada está sendo feito. Os relatórios disponibilizados nas fontes oficiais, segundo ele, são incompletos e não são gerenciais, pois a falta de cruzamento e tratamento dos dados não permite enxergar o mapa amplo e detalhado dessa população, prejudicando o avanço no tratamento da questão. Para exemplificar, ele citou a falta de interação da Prefeitura com os dados obtidos no Projeto Canto da Rua, que atendeu mais de 8.000 pessoas durante a pandemia e foi desativado neste semestre. Segundo o parlamentar, é necessário que o Município dialogue com os envolvidos, mas que oriente e coordene as ações, em vez de “deixar soltas” as diferentes ideias e iniciativas.
Assista ao vídeo da reunião na íntegra.
Superintendência de Comunicação Institucional