Riscos à identidade da criança, monetização e garantias legais foram discutidos
Foi sugerida criação de legislação municipal específica e produção de material educativo
Foto: Bernardo Dias / CMBH
O hábito de publicar fotos e vídeos sobre a vida dos filhos nas redes sociais, conhecido como sharenting (junção das palavras da língua inglesa share, que significa compartilhar, e parenting, que se refere à criação de filhos), foi debatida por especialistas das áreas de psicologia, medicina, direito, comunicação social e educação em audiência pública da Comissão de Mulheres, na última sexta-feira (3/9). Entre os pontos abordados, identidade da criança, práticas negativas de exposição, pontos garantidos pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), monetização de talentos infantis e dependência de aplicativos. Na reunião, sugeriu-se a criação de legislação específica, a partir dos temas debatidos, produção de material educativo e participação do Conselho Tutelar no desenvolvimento de ações.
Identidade da criança
A psicóloga clínica e especialista em crianças, adolescentes e consultora para pais Simone Lacerda destacou a relevância de se pensar na construção da identidade da criança e no que a exposição pode impactar em sua vida. Ela mostrou a responsabilidade dos pais no processo cognitivo, de autoestima e valorização da criança. No caso do sharenting, segundo Simone, este é um novo elemento que entra na formação da identidade, por meio das relações virtuais. A psocóloga explica que o cérebro vai se adaptando a esse novo formato e que a superexposição pode interferir negativamente na formação da imagem da criança.
Nesse ambiente, são compartilhadas experiências que levam, por vezes, à perda da coerência entre postagens e a vivência cotidiana, esvaziando, desta forma, o valor das relações e colocando-se em dúvida a intenção da exposição. Segundo Simone, muitas crianças repudiam essa situação e relatam que são forçadas a repetir, artificialmente, cenas para postagens. Outro aspecto apontado pela psicóloga foi a falta de confiança dessas crianças no que vêm na internet. Ela destacou a importância de preservação do patrimônio ético da família, com relações que assegurem a construção da valoração e do respeito, a si e aos outros.
Visão de sucesso
Para a psicóloga clínica e especialista em Terapia Cognitivo Comportamental Renata Borja Pereira Ferreira de Mello, autora de publicação que motivou a audiência, os pensamentos estão associados à emoção e é preciso um desenvolvimento comportamental para lidar com isso. Em pesquisa sobre sucesso realizada por ela, a partir da fala de adolescentes que se diziam fracassados, revela-se que a sociedade busca o sucesso que lhe é apresentado, que se resume a dinheiro, poder e status. Contudo, Renata considera inglória essa busca, salientando que internamente o que as pessoas desejam ter é tranquilidade e qualidade de vida.
De acordo com a terapeuta, visando aparentar sucesso, os pais podem causar sofrimento aos filhos com a exposição, confundindo sua intenção e tornando-se escravos das redes, buscando se sentir aceitos nesse universo. Renata salientou, ainda, que pesquisa realizada com pessoas entre 18 e 65 anos mostrou que 60% apontam como prioridades para o sucesso a família. Em seguida, aparecem a realização pessoal, trabalho, relações e amizades, superação, dinheiro, fama e poder. Desta forma, para a psicóloga, o comportamento dessas pessoas nas redes sociais não é coerente com o que elas acreditam.
Impactos nas relações e na saúde
O médico pediatra, hebiatra, professor da Academia Mineira de Pediatria e presidente do Departamento Científico de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria, Marco Antônio Gama, falou sobre seus livros, que abordam temas como impactos da evolução tecnológica nas relações familiares e interpessoais, ocasionando doenças, incluindo a dependência da rede de internet. Ele disse que a conexão, iniciada com os filhos, atingiu os pais, que passaram a se utilizar da internet como forma de ocupá-los.
Outro ponto abordado foi o narcisismo digital, com a exposição de filhos pelos pais, causando-lhes constrangimentos futuros em sites de fotografia. Contra a competitividade, a escravidão a esse mundo digital e à atitude de espelho da criança em relação ao adulto, propôs como alternativas o estímulo à volta do pensar e à afetividade, com a conscientização e a disseminação de informações, por meio de ferramentas digitais, vídeos e propagandas.
Campanhas de conscientização
Para a mestre em direito pela UFMG e defensora pública dos direitos das crianças e dos adolescentes Daniele Bellettato Nesrala, pouco tem se divulgado e se conscientizado pais acerca dos limites de publicações de imagens de seus filhos, com uma tendência à normalização desse padrão de comportamento. Daniele sugere que se converse com crianças e adolescentes sobre o risco de exposição e que sejam promovidas campanhas de conscientização, mostrando-se os limites necessários. Segundo a defensora pública, de acordo com a Constituição, a partir de 1990, crianças e adolescentes já possuem direitos e obrigações, antes mesmo de completarem 18 anos. A norma prevê a inviolabilidade de sua intimidade, de sua vida privada e de sua imagem, com direito a indenização em caso de descumprimento.
O Estatuto da Criança e do Adolescente também garante a crianças e adolescentes o direito ao respeito e à preservação de sua imagem, identidade, autonomia, valores e crenças. Para a defensora, é preciso que sejam dadas orientações interdisciplinares, nas áreas psicológica, de assistência social, médica e do direito à família e que seja dado o exemplo de conduta pelos pais.
Conforme destaca Daniele, o direito não é capaz de solucionar por si só o problema, considerando a amplitude de conflitos sociais, psicológicos e de relacionamento causados. De acordo com ela, na Vara da Infância os pais não se responsabilizam pelas situações e não sabem como agir com os adolescentes, mas a lei prevê proteção integral a esses jovens. Baseada nas experiências apresentadas na audiência, ela sugeriu a elaboração de projetos voltados a esse segmento.
A requerente da audiência, Fernanda Pereira Altoé (Novo), falou que a exposição de crianças vai além da violação de direitos, citando o uso indevido de dados por terceiros. Disse, ainda, que as discussões da audiência podem dar subsídio à criação de novas legislações no município e até mesmo a nível federal.
Família e escola
O doutor em educação, jornalista, mestre em comunicação social e coordenador do Núcleo de Estudos da Realidade Digital, Cláudio Márcio Magalhães, ressaltou a problemática da adultização da criança, visando atender à sociedade de consumo. Disse, também, que é a criança quem faz as grandes escolhas da família; e que seus talentos são colocados à disposição de agências de publicidade e do mercado, como fonte de renda do lar (monetização). Lembrou, ainda, que a internet profunda (conteúdo que não faz parte da Internet navegável, indexada por mecanismos de busca padrão, que inclui todo o domínio web invisível) abastece o mercado de pornografia infantil, que os pais não têm consciência disso e que a cobrança de uma carreira artística da criança pode levar ao suicídio.
Cláudio também sugeriu campanhas educativas voltadas aos responsáveis. Para ele, é preciso que as escolas, especialmente as públicas, façam um contraponto aos pais, incentivando o jovem a pensar na questão. Propôs, ainda, que sejam instruídos os Conselhos Tutelares, para que reconheçam o problema, salientando que a legislação proíbe crianças de participarem de redes sociais. Falou, por fim, que deveriam ser convidados jovens para participar desse debate, pois estes têm histórias para contar, podendo apresentar alternativas para o problema.
Flávia Borja (Avante) considerou que, com essa exposição, vários pais desejam se realizar por meio dos filhos, informando que será apresentado, novamente, o PL 122/2017, arquivado por manutenção de veto do Executivo, que defende a infância sem pornografia e trata de material a que a criança possa ter acesso por meio de vídeo, imagem ou texto na internet. Professora Marli (PP) salientou a importância da presença dos pais na educação das crianças, afirmando que as redes sociais despertam o interesse dos alunos para aspectos que muitas vezes se diferem de acordos familiares.
O membro do Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep/MG) Henrique Barbosa de Oliveira disse, por sua vez, falou sobre as duas vertentes do aprendizado: o ensinar, que cabe à escola, e o educar, que cabe à família. Contudo, para ele, a escola também pode ensinar a criança em seu caminho. Para o professor, o livre acesso das crianças à tecnologia leva à dependência e que, por isso, foi criado nas escolas particulares o programa de desintoxicação digital. Ele se posicionou contra o ensino de forma virtual, em função dos prejuízos causados ao aluno.
Macaé Evaristo (PT) apresentou, por sua vez, Guia Participativo de Segurança da Informação nas Escolas Estaduais, elaborado em 2015, quando a parlamentar ocupava o cargo de secretária estadual de Educação, propondo que o mesmo seja utilizado como referência para outras publicações e para a produção de material educativo na CMBH. Iza Lourença (Psol) pontuou que, no atual momento, de exposição de crianças nas redes, afloram-se preconceitos relativos à orientação sexual, gênero e raça, com ataques na internet.
Assista ao vídeo da reunião na íntegra.
Superintendência de Comunicação Institucional