Entidades criticam abordagem comportamental e individual no combate à evasão escolar
Para elas, metodologia proposta em PL transfere responsabilidades para alunos e famílias sem considerar as diferentes realidades
Foto: Abraão Bruck/CMBH
Uma semana após o primeiro debate sobre a evasão escolar na escola pública, a Comissão de Educação, Ciência, Tecnologia, Cultura, Desporto, Lazer e Turismo realizou nesta quinta-feira (2/9) uma nova audiência com o intuito de trazer posicionamentos diferentes sobre a questão. Professores e sindicalistas criticaram concepções “individualistas e meritocráticas” e defenderam a fomulação de políticas que considerem os aspectos socioeconômicos e culturais de cada território e cada família, com foco na inclusão e diversidade. Para eles, as propostas defendidas na outra audiência enfraquecem a comunidade escolar ao transferir o protagonismo para entes “de fora” com interesses próprios. Em contrapartida, foi criticada a falta de propostas concretas de participantes do debate para atacar o problema do abandono da escola.
Interesse individual x coletivo
Requerente da audiência, Macaé Evaristo (PT) defendeu a ampliação do debate sobre o papel do Estado na garantia de condições de aprendizagem e na criação de projetos de vida e carreira para alunos da escola pública, tendo como princípio a universalização do acesso à educação básica, multiplicidade de concepções e formação integral dos educandos. A petista apresentou contrapontos e objeções aos conceitos que embasam o Projeto de Lei 142/2021, de Marcela Trópia (Novo), que institui a Política Municipal de Prevenção ao Abandono e Evasão Escolar, abordados pela autora do PL e convidados na audiência do dia 26 de agosto, que inclui o estímulo de comportamentos e escolhas certas por parte dos alunos por meio de atividades e/ou disciplinas que discutam suas aspirações e possibilidades de futuro e promovam a percepção da educação como fator de crescimento econômico, aumento da renda e diminuição da violência.
Esses princípios foram questionados por Macaé, para quem a atuação conjunta de diferentes órgãos municipais, estaduais e federais, entidades da sociedade civil e da iniciativa privada na formulação/definição de conteúdos e atividades previstos no PL viola a autonomia das escolas e retira o protagonismo dos profissionais da educação na concepção e execução de projetos e ações do setor. Projetos pensados “de fora”, segundo ela, são descolados das realidades concretas dos estudantes e suas famílias, que muitas vezes não se encaixam em conceitos, metodologias e objetivos formulados por quem não vivencia o dia a dia da comunidade escolar.
O projeto de vida, para ela, não é um cálculo matemático resultado de processos lineares ou de uma psicologia comportamentalista, e sim um projeto dinâmico que deve considerar a multiplicidade e singularidade dos educandos; o “modelo empresarial” adotado no PL individualiza a responsabilidade pelo "sucesso" ou "fracasso" na escola e no mercado de trabalho e aliena os alunos dos fatores sócio-históricos envolvidos, impondo parâmetros e valores que desconsideram sua dimensão de sujeitos de direito, com culturas, saberes e desejos que não se enquadram nos paradigmas do capitalismo e das classes dominantes.
Economista e sócio-da Apó Consultoria Territorial, Wesley Cantelmo também questionou a perspectiva comportamental e a teoria econômica neoclássica que embasam as políticas propostas pelo projeto, centradas na individualidade, na competição e na racionalidade do mercado, que divergem da perspectiva educacional e projetos de vida focados no interesse coletivo, na complexidade e na criatividade dos sujeitos. A evasão escolar estaria mais relacionada ao empobrecimento das famílias, que muitas vezes dependem do trabalho das crianças e adolescentes para complementar a renda; dificuldades de mobilidade e acesso à escola; descaso do Estado e exclusão social e cultural, que obscurecem o valor do aprendizado e do ambiente escolar para a transformação da realidade e favorecem a atração dos jovens para a marginalidade.
Competência e responsabilidade
Paulo Carvalho e Barbara Ramalho, do grupo Territórios, Educação Integral e Cidadania (Teia) da UFMG, a membra do Conselho Municipal de Educação de BH Talita Barcelos e o ex-gestor da rede estadual Wladmir Coelho também se posicionaram contra as concepções e paradigmas reproduzidos no PL. Para eles, o desenvolvimento cognitivo dos estudantes e a identificação de habilidades para orientar seus projetos de vida cabem aos profissionais da educação, concursados e preparados para lidar com as realidades vividas “no chão da escola” no contexto das famílias e comunidades que ela atende. A política proposta no PL também comprometeria a função crítica e emancipatória da educação ao privilegiar caminhos e opções baseados em valores e interesses do capitalismo e da “elite branca e hétero”; as dificuldades de minorias historicamente excluídas de se identificar e se adaptar a esses parâmetros e referências levariam à perda de autoestima e desmotivação.
Representando os Sindicatos dos Trabalhadores em Educação das Redes Públicas Municipal (Sind-Rede/BH) e Estadual (Sind-UTE/MG), Vanessa Portugal e Denise Romano defenderam o financiamento público da educação universal e de qualidade e a valorização dos docentes dentro e fora da sala de aula, possibilitando o aprimoramento das atividades de planejamento e avaliação e a qualificação profissional continuada. “Os professores dão conta, desde que sejam propiciadas as condições adequadas”, garantem as sindicalistas, que como os outros também possuem longa trajetória dentro das salas de aula. Para as sindicalistas, a promoção da igualdade de oportunidades e o suporte às famílias também são atribuições do Estado: o agravamento da pobreza e a desigualdade de acesso ao ensino remoto na pandemia evidenciaram ainda mais a necessidade de ações governamentais.
Iara Balbino, da Associação de Mães, Pais e Responsáveis de Estudantes da Educação Municipal de Belo Horizonte (Ampare) reconheceu a boa intenção e os méritos do PL, mas questionou sua efetividade, lembrando outros tantos programas e políticas que “não chegaram na ponta”. Considerando que muitos pais precisam trabalhar e não têm tempo de acompanhar a aprendizagem dos filhos, ela receia que a política proposta acabe por penalizar os pais ao cobrar algo que eles não podem oferecer e responsabilizá-los pela evasão escolar. Iara salientou a importância do papel social da escola e a omissão do Estado em torná-la acolhedora e inclusiva, estimulando nos alunos a vislumbrar um mundo melhor.
“Devaneios ideológicos”
Autora do PL 142/21 e presidente da Comissão de Educação, Ciência, Tecnologia, Cultura, Desporto, Lazer e Turismo, Marcela Trópia (Novo) criticou a colega do PT pela reunião de vozes uníssonas e sem contrapontos que impediu o debate mais amplo e qualificado dessas questões. Segundo ela, na audiência da semana passada realizada a seu pedido as discussões se basearam em estudos, números e dados apresentados por especialistas renomados, reconhecidos como referências em boas práticas contra a evasão escolar pela própria Unesco, e também pela secretária municipal de Educação de Florianópolis, onde as políticas públicas adotadas para prevenir a evasão escolar são consideradas exemplares. Embora o requerimento de Macaé não faça referência explícita ao PL, a autora acusou a colega de promover o encontro com o único objetivo de reunir vozes uníssonas para criticar o texto e seus fundamentos, sem trazer nenhuma proposta concreta para tratar o problema. Marcela classificou a rejeição da contribuição de atores “de fora” do corpo formal da escola como “arrogância” e as alegações apresentadas como “devaneios ideológicos”.
Macaé e os convidados protestaram, ressaltando que o encontro, argumentos e colocações apresentadas não tiveram o objetivo de desqualificar o projeto ou seus defensores, e sim trazer a discussão para o campo filosófico, pedagógico e ideológico, jogando luz sobre as concepções e princípios que estão por trás da evasão escolar e das diferentes formas de compreender e abordar o problema. Justificando a pertinência do debate, os participantes asseguraram que todos possuem a qualificação e experiência necessárias para discutir o tema, e alegaram que também não foram informados nem convidados a participar da audiência anterior, focada na visão de empresários e gestores de escolas privadas, numa perspectiva bem distante da concepção de interesse público e coletivo defendido por eles.
Assista ao vídeo da reunião na íntegra.
Superintendência de Comunicação Institucional