CARROCEIROS

Falta de diálogo e de competência para legislar foi destaque em audiência

Modo de vida de povos tradicionais e circulação de veículos de tração animal são protegidos pela CF e por órgãos internacionais

terça-feira, 1 Agosto, 2023 - 18:15
Foto do Plenário Camil Caram lotado com participantes da Audiência Pública. Presidindo a reunião, a vereadora Iza Lourença (Psol)

Foto: Bernardo Dias/CMBH

A constitucionalidade da lei que proíbe definitivamente o uso de carroças puxadas por animais em BH foi questionada pelos participantes da audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos, Habitação, Igualdade Racial e Defesa do Consumidor, nesta terça-feira (1º/8). O reconhecimento de comunidade tradicional concede aos carroceiros o direito de continuar o modo de vida peculiar e exige que seja feita uma consulta prévia quando há proposta de alteração desse costume. Segundo os participantes, a proposta excludente e preconceituosa desrespeita leis federais e internacionais e o Município pode ser chamado à responsabilização por danos existenciais dessas comunidades.

Autora do requerimento, junto com Pedro Patrus (PT) e Cida Falabella (PSD), Iza Lourença (Psol) destacou que os parlamentares não são favoráveis aos maus tratos dos animais “como espalhado nas redes sociais, pelo contrário, somos a favor de uma fiscalização rígida”. Iza alertou que o projeto que reduz o tempo para circulação de veículos de tração animal de dez para cinco anos vai excluir a comunidade carroceira tradicional de BH e empurrar para a situação de miséria famílias inteiras. 

Comunidades tradicionais

Presidente da Associação de Carroceiros e Carrocerias Unidos de BH e RMBH, Sebastião Alves Lima se diz a favor da fiscalização. Ele defendeu o que chamou de costumes diferenciados das comunidades tradicionais e assegurou que os animais são bem cuidados. Sebastião acredita que a proibição de circulação de carroças vai atingir cerca de dez mil famílias em BH. O vice-presidente da associação, Maxwell Moreira, afirmou que a comunidade, atacada frequentemente nas redes sociais, é formada por pessoas simples, “que vêm da terra”. Ele também defendeu a legitimidade da comunidade como tradicional e lembrou que existem leis nacionais e internacionais em defesa delas. “Esse PL fere o nosso direito e  desrespeita a lei que protege a nossa comunidade”, afirmou.

A representante da Agência Nacional de Desenvolvimento e Recursos Especiais do Povo Cigano também saiu em defesa das comunidades tradicionais. Ao afirmar que trata-se de uma perseguição, Valdinalva Calvas destacou que a proposta interfere no modo de vida das comunidades do povo cigano, indígena e de terreiro sem que houvesse consulta prévia, conforme determina a legislação vigente. 

Proposta excludente

A tese foi corroborada pelo professor da UEMG Emanuel Duarte. Segundo ele, há uma clara impressão de que há, por parte do Legislativo, uma tentativa de criminalizar o trabalho com as carroças, mas não há um movimento de criminalização ou de questionamento do trabalho dos animais nos haras ou na Polícia Militar. “Então, fica evidente um claro racismo ambiental inclusive com utilização do ‘termo escravidão dos animais’”, pontuou. O professor fez questão de destacar que o título de comunidade tradicional não é concedido pela universidade ou pelo Legislativo, mas um reconhecimento da própria comunidade. “Elas são identidades que se mobilizam em contexto de conflito ambiental, quando reafirmam sua identidade como estratégia de luta. Não é uma invenção, é uma mobilização política na garantia de direitos. Emanuel Duarte defende a perpetuação das atividades com o argumento de que a comunidade “só vai acabar quando os carroceiros disserem que vai acabar”.

O desrespeito às leis e convenções internacionais também pautou a fala da vereadora Cida Falabella, que acredita ser necessário fazer um debate mais aprofundado sobre a questão. Para ela, além de se tratar de um debate elitista, seletivo, com traços racistas e classistas, as leis e convenções estão sendo desrespeitadas em uma Casa onde se faz leis. 

Para o defensor público Paulo César Almeida, a maior falha tanto da Lei 11.285/2021 quanto do PL 545/2023 é a falta de diálogo com a comunidade tradicional, que tem assegurado seu direito à consulta livre, prévia e informada, nos moldes das Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo o defensor, é preciso disponibilizar informações a respeito do que está sendo planejado; quais as perspectivas; e quais os dados foram coletados. Paulo César explicou que a consulta prévia deve garantir uma coexistência entre uma medida administrativo-legislativa e a perpetuação do patrimônio histórico e cultural que representa aquela comunidade. Ao afirmar que o Município já está fazendo plano de transição que retira a possibilidade de circulação das carroças, ele frisou que “não existe possibilidade de conciliação, uma vez que a norma vai extinguir os carroceiros”. 

Ao afirmar que há carroceiros zelosos e há transportadores que sobrecarregam os animais, que podem ser alvo de fiscalização, Paulo César também destacou a seletividade das propostas e pontuou que não há estudos sobre os impactos na vida dessas comunidades. “Como se dará a substituição das carroças pelos veículos automotivos? Quem vai custear essa mudança? Quantas famílias serão impactadas? Se não temos respostas para essas perguntas, não podemos aprovar a lei”, afirmou. 

O representante da Defensoria Pública assegurou que a proposta é inconstitucional porque ignora a disposição já existente em âmbito federal no Código de Trânsito Brasileiro, que admite veículo de tração animal e permite que o município legisle a respeito de registro, licenciamento e autorização para conduzir veículos de tração animal. “A permissão para circulação desses veículos é federal porque ela é livre. Para a Defensoria Pública, tanto o PL quanto a lei são inconstitucionais e violadores de direitos humanos.

Inconstitucionalidade

O entendimento do procurador do Ministério Público (MP) Helder Magno vai na mesma direção da Defensoria. Ele explicou que a questão chegou ao MP antes da aprovação da lei, em 2021, e que, desde então, tem sido objeto de atenção do órgão. Segundo ele, as proposições “padecem de vícios de inconstitucionalidade e de inconvencionalidade, e que cabe uma adoção de propositura de ADI perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais”. O procurador reforçou que a matéria é de competência federal, não sendo permitido ao município legislar sobre isso. 

A falta de consulta prévia também foi citada pelo procurador, que justificou a presença do MP na audiência, tendo em vista que o Estado de Minas Gerais já reconheceu oficialmente os carroceiros como comunidade tradicional. “Diante disso, o Município pode ser chamado à responsabilização por danos existenciais dessas comunidades”, disse. Nas palavras do procurador, é um ato normativo que na prática se mostra excludente, racista e violador de direitos e de modo de vida de uma comunidade tradicional. 

Plano de ação

Um plano de transição estaria sendo elaborado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico.  A informação foi dada pelo subsecretário de Trabalho e Emprego, Luiz Otávio Fonseca, que se colocou à disposição para, segundo ele, construir juntos uma proposta viável, “ nos moldes do que foi feito em Brasília, com a utilização de veículos automotivos”. Ele sugeriu que os vereadores usem emendas impositivas para ajudar no auxílio dessas comunidades, caso a proposta de redução de dez para cinco anos seja consolidada. O subsecretário não soube detalhar esse plano de ação, mas se comprometeu a disponibilizar e assegurou que o documento foi elaborado por meio de um Grupo de Trabalho da PBH e publicado no Diário Oficial do Município (DOM).

A representante do Centro de Documentação Eloi Ferreira da Silva afirmou que não há que se discutir plano de transição se o MP e a Defensoria já destacaram a inconstitucionalidade da lei. “É surreal. Por que discutir um projeto de lei que vai piorar uma situação que já é absurda e ilegal?,” questionou. Pedro Patrus (PT) ponderou que ações práticas precisam ser tomadas diante das informações destacadas na audiência. “Se a lei é inconstitucional, a Defensoria Pública pretende judicializar a questão? E quanto ao PL que já está em tramitação em 2º turno", indagou.

O gerente de Defesa dos Animais da SMMA, Leonardo Maciel, afirmou que a PBH está focada na execução da lei que prevê a regulamentação da atividade carroceira. Segundo ele, a PBH mantém uma boa relação com a comunidade promovendo encontros para emplacamento de carroças, cadastro, vacinação, aplicação de vermífugo e carrapaticida e chipagem dos animais. Para ele, a questão envolve outros aspectos que também devem ser abordados, “como a presença de crianças na condução de carroças pela cidade”. Ele assegurou que a PBH não está contra os carroceiros e se colocou à disposição para dialogar. 

Superintendência de Comunicação Institucional 

Audiência pública pare discutir a situação dos carroceiros 24ª Reunião Ordinária Comissão de Direitos Humanos, Habitação, Igualdade Racial e Defesa do Consumidor