Combate ao racismo: uma luta diária e de todos contra a discriminação
Preconceito de raça está incrustrado na sociedade, o que torna ainda mais importante o direcionamento do poder público na produção de leis
Foto: William Delfino/CMBH
“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora”. A frase, que poderia ser atribuída a um ativista negro de qualquer região do mundo, saiu da boca, e por que não dizer do coração, de uma mulher nascida em Belo Horizonte, em 1935, que ficou conhecida em todo o Brasil por sua luta incansável contra a discriminação racial e pelos direitos do povo negro. Seu nome é Lélia Gonzales, intelectual, professora, filósofa e antropóloga, falecida em 1994. Muito da luta por igualdade racial e construção de direitos para a comunidade negra no país e na capital mineira tem os pés fincados nos mesmos objetivos pelos quais Lélia lutou por toda a vida.
“É no legado daquelas que vieram antes de nós que encontramos forças para seguir lutando pela eliminação do racismo. Belo Horizonte tem o privilégio de ter sido o berço de Lélia Gonzales, uma das maiores ativistas antirracistas do mundo, e que revolucionou a forma de se pensar o racismo brasileiro. Lélia é exemplo de luta. Se inspirar nos feitos dessa belo-horizontina nos aponta o caminho que devemos seguir para construir uma cidade e um país livres de todas as formas de opressão”, diz Iza Lourença (Psol), vereadora ativa no trabalho parlamentar acerca das questões raciais.
Iza foi relatora da Comissão Especial de Estudo criada pela Câmara Municipal de Belo Horizonte que trabalhou (2021/2022) com o tema Empregabilidade, Violência e Homicídio de Jovens Negros, presidida por outra mulher negra: a vereadora Macaé Evaristo (PT). A comissão é responsável pelo projeto que deu origem à Lei 11.440, que obriga a Prefeitura de BH a criar um banco de dados capaz de subsidiar ações previstas na Política Municipal de Promoção da Igualdade Racial. Sancionada em 27 de dezembro de 2022, a norma tem como um de seus principais objetivos qualificar as ações do Município e auxiliar de forma prática no combate ao racismo na capital. Segundo a justificativa dos autores, a falta de dados comparativos, mais aprofundados e completos ao longo dos anos dificultou muito a compreensão da situação em BH e via de regra a formulação de políticas públicas efetivas.
Somos ou não racistas?
Como em todo o Brasil, Belo Horizonte também tem uma história longa de racismo e opressão contra a população negra. Segundo a urbanista e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Camila Bastos, em 1872, antes da construção de Belo Horizonte, o chamado Curral del Rey tinha mais de 79% da população constituída de pardos e pretos, com a maior parte dessa população considerada livre. Segundo ela, esse povo não teve seus direitos preservados pois, com a construção da cidade, houve uma segregação da população, com os brancos morando na parte interna da Avenida do Contorno e pretos e pardos se deslocando para vilas e favelas. Dados apresentados por ela em debate feito pela Câmara Municipal dão conta de que os moradores das vilas e favelas de BH são majoritariamente pretos e pardos (80%), mesmo com essa população representando pouco mais da metade (53%) de todos os moradores da cidade.
De acordo com o advogado, filósofo e professor da Fundação Getúlio Vargas Sílvio Almeida, nosso dia a dia está repleto de atitudes racistas. “O racismo é a manifestação normal de uma sociedade e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea”, diz Sílvio. Esta definição de racismo está na introdução de seu livro “O que é racismo estrutural”, texto que busca demonstrar como o preconceito de raça está incrustrado na sociedade, o que torna ainda mais importante o direcionamento a ser dado pelo poder público na produção de leis e políticas capazes não só de combatê-lo, mas também de promover uma verdadeira igualdade racial.
Para o vereador Wesley (PP), uma das formas de combater o racismo é promover a igualdade de direitos desde a chamada primeira infância, com destaque para a educação, o que torna fundamental o trabalho dos legisladores. “A brutal desigualdade de oportunidades nas condições iniciais de vida de nossas crianças e jovens, decorrente de nossas disparidades de renda, bloqueia e impede aos nossos infantes em tenra idade a desenvolverem adequadamente sua capacidade e talentos. Daí a necessidade de mudança estrutural, visando retirar essa geração da estagnação social, mediante políticas públicas focadas na transformação do ser humano, ou seja, educação de qualidade na base da pirâmide. A Câmara, através de seus representantes, pode e deve discutir todas as formas de ampliação de oportunidades educacionais, não se limitando à atuação precípua do Estado/Município”, disse o vereador. A taxa de analfabetismo entre negros de mais de 15 anos no Brasil é mais que o dobro da registrada entre brancos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice era de 9,1% em 2018, contra 3,9% entre a população não negra.
Mais participação nas decisões
Uma das formas de combater efetivamente o racismo e investir em leis que buscam a igualdade racial é ampliar a participação de negros no parlamento. Apesar do aumento de candidaturas de pretos e pardos para as casas legislativas de todo o Brasil em 2022, o número de candidatos efetivamente eleitos não cresceu na mesma proporção. Dados divulgados pela Câmara dos Deputados dão conta de que, mesmo tendo um acréscimo de 36,25% no número de candidatos, o Legislativo Federal só contará com mais 8,94% de pretos e pardos, se comparado às eleições de 2018. Foram eleitos em 2022, 21 pretos e 102 pardos para a Câmara Federal.
Em BH também houve um aumento em relação à última legislatura com a eleição de seis vereadores que se declararam pretos ou pardos: Iza Lourença, Macaé Evaristo, Wesley, Cleiton Xavier, Marcos Crispim (PP) e Gilson Guimarães (Rede). Para Macaé, estar nesses espaços é uma conquista dura que requer esforço contínuo. “Uma das questões do racismo no Brasil é que o tempo todo somos colocados em uma posição de subalternidade, de negação de determinados lugares para nossa presença. Quando se é mulher negra, quando se é homem negro no espaço político e isso é colocado como um marcador, é claro que você vai sofrer tentativas de interdição de maneira muito forte e muito veemente. É como se dissessem: pessoas negras, não queiram trazer sua voz, seu pensamento, suas causas para esse espaço. Esse espaço não é de vocês. É esse conflito que está posto cotidianamente”, explica a vereadora.
De acordo com Marcos Crispim, o racismo precisa ser também combatido nos ambientes de poder. “Eu, como vereador negro, sinto na pele o preconceito, inclusive em minha função parlamentar. Uma das lutas do meu mandato é o combate a discriminações raciais, sociais, étnicas e religiosas, buscando desenvolver políticas públicas específicas para grupos historicamente vulneráveis”, conta o vereador. O estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, desenvolvido pelo IBGE, mostra que pardos e pretos são minoria no Poder Legislativo, apesar da representação ser fundamental para a construção de debates e projetos que diminuam a desigualdade no país. Em 2018, negros eram apenas 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados estaduais eleitos. Nas eleições municipais de 2016, eles eram 42,1% dos vereadores.
"A importância de um vereador negro e periférico, dentro de um parlamento é enorme, principalmente, para as comunidades carentes. Se ver representado é um caminho pra evidenciar que é possível, nós negros, estarmos em lugar de destaque e devemos ocupar nosso espaço. Espaço de representatividade, gerência e organização na missão de fazer uma comunidade mais democrática racialmente", testemunha Gilson Guimarães. Segundo o vereador, sua luta como um parlamentar negro é para que todos tenham as mesmas oportunidades de ascensão profissional e social.
Trabalhando contra a desigualdade
A ampliação do número de parlamentares negros fez com que o tema tivesse, nos últimos anos, mais espaço na Câmara de BH. Além da proposta que cria um banco de dados para auxiliar nas políticas públicas voltadas para o tema, a CMBH tem debatido e apresentado outros projetos que visam reduzir a desigualdade entre brancos e negros. Entre eles estão o PL 396/2022, que amplia de 20% para 50% a reserva das vagas oferecidas nos concursos públicos da administração municipal, e o PL 351/2022, que institui o Estatuto da Igualdade Racial em Belo Horizonte. Além de projetos, a Câmara Municipal tem sido lugar privilegiado de debate sobre o tema com a realização de uma série de audiências públicas durante os últimos anos, sempre relacionando o racismo a assuntos diversos como violência, geração de emprego, cultura, educação e violência contra as mulheres. As reuniões foram realizadas pela Comissão Especial de Estudo sobre Empregabilidade, Violência e Homicídio de Jovens Negros e pela Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor, que em 2021 incluiu o tema Igualdade Racial em sua denominação oficial, passando a chamar-se Comissão de Direitos Humanos, Igualdade Racial e Defesa do Consumidor.
Segundo Cleiton Xavier (PMN), é fundamental utilizar todas as ferramentas na luta por igualdade. “Devemos incentivar e promover os direitos humanos a partir do combate ao racismo, tão presente na vida cotidiana em nossa cidade. A vida da pessoa negra importa e deve ser protegida sob todos os aspectos.Somos mais de 200 milhões de negros nas Américas e isso implica que, independentemente da cor da pele, o que realmente importa é a tolerância e o amor que devemos ter uns com os outros, assim como Deus nos amou através de Cristo Jesus”, defende o vereador.
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